A
alínea d) do artigo 199º da Constituição estabelece que compete ao Governo, no
exercício das suas funções administrativas, «dirigir os serviços e a actividade
directa do Estado, civil ou militar, superintender na administração indirecta e
exercer a tutela sobre esta e sobre a administração autónoma».[1] A partir
deste artigo, como explica Freitas do Amaral, podemos divisar três modalidades
de administração pública: a administração direta, a administração indireta e a
administração autónoma.
A
definição de cada uma dessas modalidades, confronta-nos com o conceito de
pessoa colectiva pública ou de direito público. Este conceito reconduz-nos à
distinção entre entidades públicas e privadas, visto que se assiste,
contemporaneamente, à criação de novas realidades, que não se subsumem
facilmente ao conceito tradicional de Administração Pública.
Para
Freitas do Amaral, a distinção entre pessoa coletiva pública e privada é
possível, útil e necessária, decorrendo da lei, que lhe atribui consequências
práticas.[2] Deste modo, para o Professor, não há pessoas coletivas privadas
que façam parte da administração pública. Esta visão tradicional aproxima-nos,
por sua vez, do tema em apreço: as associações públicas e, em especial, as
associações de municípios.
Antes
de explicar em que é consistem as associações, Freitas do Amaral define a administração
autónoma, “ (….) que prossegue os interesses públicos próprios das pessoas que
a constituem e por isso se dirige a si mesma, definindo com independência a
orientação das suas atividades (…) ”[3]. Nela, há várias espécies de entidades
públicas que fazem parte da Administração autónoma: as associações públicas, as
autarquias locais e, por fim, as regiões autónomas.
As
entidades de tipo associativo são compostas, por conseguinte, por um
agrupamento de pessoas, que prosseguem autonomamente fins públicos pertencentes
a um grupo de pessoas com esse fim comum. Podemos triparti-las, de acordo com a
doutrina tradicional, em associações de entidades públicas, associações
públicas de entidades privadas e associações públicas de caráter misto. As
primeiras resultariam da associação, união ou federação de entidade públicas
menores e, especialmente, de autarquias locais; já nas associações públicas de
entidades privadas importa destacar, designadamente, as ordens profissionais;
por último, nas associações públicas de caráter misto, encontramos, numa mesma
associação, pessoas coletivas públicas e pessoas coletivas privadas.[4]
Através
da definição e a tripartição das associações públicas proposta por Freitas do
Amaral, afastaríamos delas as associações privadas. Todavia Vital Moreira,
defende, por sua vez, na sua tese de doutoramento, que a associação pública não
deixa de ser, por definição, uma entidade baseada num conjunto de pessoas que
se reúnem em função de um interesse comum. Daqui resulta que as associações
públicas, “ (…) que têm por escopo a representação e prossecução dos interesses
de uma determinada categoria (…) ou agrupamento social, não diferem
estruturalmente das associações privadas. Por mais que as exigências de
publicidade reclamem um regime especial das associações públicas face às demais
associações, há sempre algo que permanece incontornável: o facto de numas e
noutras existir umas coletividade de pessoas organizada numa estrutura gerida
por representantes seus e votada à prossecução de interesses próprios dessa
mesma coletividade.”[5] Deparamo-nos, portanto, na Administração Pública, com
uma tensão entre interesse público e associativismo.
A
tensão entre o interesse público e os interesses individuais, em face das
associações públicas e privadas coincide com o problema clássico da distinção
entre entidades públicas e privadas, ainda que, como salienta Vital Moreira, a
questão da distinção seja, nas associações, suplementarmente complicada, visto
que as associações públicas têm por regra como substrato uma coletividade de
particulares.[6] Esta conclusão reforça, aliás, a tese defendida por Alexandra
Leitão, segundo a qual a natureza pública da pessoa coletiva derivaria do
interesse, público ou privado, e não do seu modo de criação.[7]
A
criação por um ato privado não confere natureza privada, quer por prosseguir o
fim público, quer por estar sujeito a regras de Direito Administrativo. Na
sequência desta visão, podemos encontrar no ordenamento jurídico português
casos em que o “nomen iuris” utilizado pelo legislador chega a ser
contraditório com o regime jurídico estabelecido no mesmo diploma legal, ou
resultante do ordenamento jurídico no seu conjunto.[8]
Na
sequência destas conclusões, as associações de municípios são um exemplo
adequado, pela controvérsia em torno do regime jurídico que lhe é aplicável,
visto que está, na verdade, como defende Alexandra Leitão, submetido a
vinculações jurídico públicas. Importa, então, pelo interesse da questão,
proceder a uma breve análise crítica da Lei nº45/2008.[9]
Antes
de mais, importa notar que o associativismo municipal é um elemento vital no
reforço do poder local, consagrando os princípios da descentralização e da
subsidiariedade consagrados na Constituição da República Portuguesa.
Com
o início de vigência, a 27 de Agosto de 2007, do Regime Jurídico de
Associativismo Municipal, determinar-se-ia a tipologia, a natureza e a
constituição das associações de municípios, divididas em associações de fins
múltiplos e de fins específicos.
De
acordo com o artigo 2º/ 2, da Lei n.º 45/2008, “as associações de municípios de
fins múltiplos, denominadas Comunidades Intermunicipais (CIM), são pessoas
colectivas de direito público constituídas por municípios que correspondam a
uma ou mais unidades territoriais definidas com base nas Nomenclaturas das
Unidades Territoriais Estatísticas de nível III (NUT III) e adoptam o nome
destas”. Por conseguinte, o n.º 4 do mesmo artigo define as associações de
municípios de fins específicos enquanto “(…) pessoas colectivas de direito
privado criadas para a realização em comum de interesses específicos dos
municípios que as integram, na defesa de interesses colectivos de natureza
sectorial, regional ou local”.
Ao
invés da legislação anterior, a presente lei atribui às associações de
municípios de fins específicos natureza privada, pelo que todo o funcionamento
destas associações passa a ser regulado pelo direito privado. No entanto, o
legislador, nos termos do art. 38º/5, ressalvou a possibilidade das associações
de fins específicos já constituídas manterem a natureza de direito público.
Salvo esta exceção, confrontamo-nos com o regime jurídico das associações de
municípios bastante desenvolvido nos artigos 2º a 33º e, por outro lado, com um
regime pouco desenvolvido das associações de municípios de fins específicos,
constante, em geral, nos artigos 34º a 37º.
Por
último, cumpre destacar o seguinte excerto de Vitor Bruno de Sá Santos: “Parece evidente que na redacção da lei
actualmente em vigor, o legislador encara com desfavor as associações de
municípios de fins específicos, contrastando este facto com o tratamento que
concede às associações de municípios de fins múltiplos, desfavor evidenciado, desde
logo, na diversidade de regimes jurídicos e, no que respeita ao regime jurídico
das associações de municípios de fins específicos, nas dificuldades de
articulação entre o regime jurídico privado e os regimes de direito público a
que a lei obriga. O regime jurídico das associações de municípios de fins
múltiplos está vocacionado para que estas possam gerir fundos comunitários e
demais investimentos provenientes da Administração Central, assim como receber
recursos financeiros, fixados na lei, por transferência do orçamento de Estado,
o que já não é evidente no que às associações de municípios de fins específicos
concerne.”[10]
Em conclusão, tal como explica
Alexandra Leitão e Vital Moreira, a distinção entre entidades públicas e
privadas suscita problemas, que estão, em especial, presentes nas associações.
Em face deste problema delicado, a análise crítica dos diplomas legais é
essencial, porque, por vezes, o próprio legislador cria regimes jurídicos que
são, por conseguinte, igualmente controversos.
[1] Diogo Freitas do Amaral, “Curso de Direito
Administrativo”, vol. I, 3ªed., 2ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2008, página
417;
[2] Ibidem, p. 751;
[3] Ibidem, p. 420;
[4] Ibidem, pp. 422 e sgts;
[5] Vital
Moreira, “Administração autónoma e associações públicas”, Coimbra
Editora, Coimbra, 2003, páginas 398 e 399;
[6] Ibidem;
[7] Alexandra Leitão, Contratos
interadministrativos , orient. Sérvula Correia. - Lisboa : Almedina, 2011,
Tese de doutoramento, Ciências Jurídico-Políticas (Direito
Administrativo), Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 2011;
[8] Ibidem;