sábado, 27 de outubro de 2012

Relatório sobre fundações tem erros mas Governo descarta responsabilidades



Colegas,
Partilho convosco o excerto de uma notícia, publicada pelo jornal Público em Agosto, a propósito da introdução, na aula teórica, ao terceiro ponto do programa: “A Torre de Babel – A Administração Pública Portuguesa”.

“O relatório de avaliação das fundações divulgado pelo Governo tem erros, nomeadamente na identificação de algumas instituições e no respectivo número de beneficiários. A Tutela, porém, diz que “não há qualquer erro” no documento, ressalvando que “eventuais imprecisões, caso sejam apuradas” são imputáveis a “deficiências” na informação prestada pelas entidades avaliadas.
O documento foi publicado ontem e as reclamações não tardaram. A Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), por exemplo, foi identificada como sendo pública, quando na verdade é totalmente privada e “não recebe apoios do Estado para a sua gestão e funcionamento”, esclarece a instituição em comunicado.
Sobre essa falha, o secretário de Estado da Administração Pública, Hélder Rosalino, esclarece por email que a classificação jurídica da fundação já foi alterada e resultou de “diferentes interpretações de análise”. Esta “questão”, afirma, não terá “qualquer influência no sentido da avaliação/resultados da fundação”. O grupo de trabalho que avaliou as fundações atribuiu à Gulbenkian 53,5 pontos em 100.


Mas a FCG não se fica por aqui nos pedidos de esclarecimento. No comunicado, sublinha ainda que o valor inscrito no relatório como apoios financeiros públicos recebidos – 13,4 milhões de euros entre 2008 e 2010 – destinou-se “exclusivamente” a apoiar a investigação científica e projectos sociais e de ajuda ao desenvolvimento, realizados em parceria com organismos públicos.

No documento, discrimina os valores gastos, por áreas de projecto: para investigação e divulgação de Ciência, foram gastos 8,2 milhões de euros; para projectos de apoio ao desenvolvimento foram encaminhados 2,5 milhões de euros; e na área social foram investidos 1,04 milhões de euros. Os restantes1,6 milhões de euros foram destinados a outros pequenos projectos que tiveram o apoio da fundação, segundo fonte oficial da instituição. (…)”


Esta notícia conduz-nos, em primeiro lugar, ao conceito de Administração Pública em sentido orgânico. Tal como explica Pedro Gonçalves, “ao contrário do que poderia supor-se, a definição dos limites do conceito institucional, orgânico ou subjectivo de Administração Pública não se apresenta uma tarefa fácil. Trata-se, aliás, de um campo de divergências na doutrina.” O Professor enuncia três diferentes orientações: em primeiro, a dos autores que, numa perspectiva tradicional, continuam a exigir o critério da personalidade jurídica pública e, em seguida, aqueles que dispensam essa exigência, integrando na Administração as entidades formalmente privadas; por fim, encontramos autores que defendem a delimitação do conceito de Administração que, para além das pessoas públicas, inclui quaisquer entidades privadas, dotadas de funções públicas administrativas [1].
Atente-se, no entanto, como ponto de partida, na definição de Administração Pública em sentido orgânico, enquanto “ sistema de órgãos, serviços e agentes do Estado, bem como as demais pessoas colectivas públicas, que asseguram em nome da colectividade a satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar”[2].
As divergências doutrinárias acerca do conceito de Administração Pública conduzem-nos, por sua vez, a um outro ponto essencial: por que razão a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) defende ser uma intuição privada, e de que modo se entrelaça com a acepção de Administração Pública?
O relatório de avaliação das fundações tem erros, que reflectem uma Administração que se assemelha, tal como defende o Professor Vasco Pereira da Silva, à “Torre de Babel”, e que transparece uma problemática que é actualíssima. Assim, tal como explicou o Professor, desse relatório, podemos retirar elementos que transparecem as dúvidas existentes quanto à inclusão de determinadas entidades no conceito de Administração Pública, encontrando-se, entre eles, a errónea qualificação de algumas instituições, tal como sucedeu com a FCG.
Para percebermos, mais especificadamente, o relevo da problemática importa contrapor institutos públicos e entidades de natureza jurídico-privada. Institutos públicos são “entes públicos de natureza institucional criados pelo Estado (ou por outra pessoa colectiva pública, pertencendo neste caso à Administração instrumental desta) a fim de assegurar a prossecução, sem fins lucrativos, de determinadas atribuições daquele. Os institutos públicos podem revestir natureza fundacional, consistindo basicamente em afectações patrimoniais a uma finalidade (…); ser constituídos por serviços públicos personalizados (…); ou ainda exercer a sua actividade, de carácter social ou cultural, em regime de abertura ao público, prestando-a a todos quanto dela carecem – estabelecimentos públicos”. Existe ainda, de acordo com João Caupers, uma quarta modalidade, composta por “quase empresas públicas”[3]. Diferentemente, como reconhece o Professor, existem ainda diversas entidades, como é o caso das instituições particulares de interesse público, que se dividem em pessoas colectivas de utilidade pública e sociedades de interesse colectivo. As pessoas colectivas de utilidade pública são “entidades sem fins lucrativos, de natureza associativa ou fundacional, que prosseguem fins de interesse geral, cooperando com a Administração Pública central ou local, merecendo desta a declaração de utilidade pública (cfr. Artigo 1, nº1, do Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro).”[4]
Dito isto, note-se que, como explicou o Professor Vasco Pereira da Silva, a FCG é uma instituição de capitais privados, tal como explicita, aliás, o artigo 8º dos Estatutos da Fundação [5].
Deparamo-nos com uma instituição particular, que se rege por normas de direito privado, mas não só, uma vez que, tal como explica Freitas do Amaral, tratando-se uma instituição particular de interesse público, quando prossegue fins de interesse público, aplica-se-lhe também um regime traçado pelo Direito Administrativo [6]. Foi clarificado, através da definição de João Caupers que interesse público será aquele que o legislador determinar. Além disso, olhe-se, por exemplo, para o Estatuto da Fundação, para o Dl  N.° 40690 [7], de 18 de Julho de 1956 [5] e, ainda, para o Dl 460/77, de 7 de Novembro [8].
Em terceiro lugar, importa aferir a importância da classificação jurídica da fundação, tal como reclamou a FCG.  Ora, Pedro  Gonçalves explica, na sua tese, que a “ a distinção entre entidades públicas e entidades privadas é um dos “temas capitais” do domínio jurídico que, pela sua importância, está estudado e tratado com abundância pela doutrina mais qualificada: quer sobre o interesse da distinção, quer sobre os critérios possíveis para a efectuar, tudo já foi dito.” [9]
Note-se, antes de mais, que a personalidade de direito público e a personalidade de direito privado constituem mais uma expressão da dicotomia entre público e privado, que distingue as entidades e organismos do Estado, que se inserem na Administração pública e se dedicam à execução de tarefas públicas e à prossecução de fins públicos, das entidades que prosseguem tarefas e fins privados. Todavia, esta distinção tradicional tem sido posta em causa por diversos factores, como lembra Pedro Gonçalves: inúmeras vezes, as pessoas públicas utilizam o direito privado; assiste-se, cada vez mais, à criação pública de entidades privadas para prossecução de tarefas e fins públicos; entidades privadas assumem funções públicas; a justiça administrativa alarga-se à resolução de conflitos entre entidades privadas; também as pessoas de direito público passam a ser titulares de direitos fundamentais; além disso, acrescenta ainda o Professor, conhecem-se casos de “personalidade pública formal”, bem como de “pessoas ficticiamente privadas”. [10] Há, em síntese, uma quebra entre “personalidade pública- tarefa pública – direito público”. [11] Todavia, o Autor lembra que o alargamento do direito público às pessoas privadas não deve ser entendido como um sinal de que a distinção entre a personalidade de direito público e a personalidade de direito privado perdeu a importância que outrora possuía.
O Professor Pedro Gonçalves não se mostra, portanto, indiferente a esta problemática, defendendo o designado “princípio da congruência entre formas organizativas e direito aplicável”. «A criação de uma entidade com personalidade de direito público implica a sua entrada automática na “esfera pública”, no grupo das organizações que integram a “máquina” ou o “aparelho administrativo” e implica também uma publicitação das tarefas de que actividade fica incumbida. Por outro lado (…), a acção pública das pessoas públicas é em princípio, regida pelo direito público administrativo (…). Ao contrário, a actuação (mesmo a pública) das pessoas privadas encontra-se também em princípio, regida pelo direito privado.» [12] Estes dois princípios seriam a consequência do “princípio da congruência”.
Assiste-se, de facto, a uma alteração do paradigma clássico da distinção entre direito público administrativo e direito privado, que deixam de representar dois mundos diferentes, pelo que a doutrina, em face das novas formas organizativas que surgem, tentou apurar se nos deparamos, ou não, com pessoas coletivas públicas e de que modo se integram na Administração Pública. Surgem, então, critérios, tais como, por exemplo, o da iniciativa, do acto de criação pública, do fim e o critério dos poderes exorbitantes, que encontram assento nas definições de pessoa colectiva  pública de diversos autores, como Freitas do Amaral, Vital Moreira e Marcelo Rebelo de Sousa [13].
No entanto, estas definições não estão, para a Dra. Alexandra Leitão, isentes de críticas. E é precisamente por isso que Pedro Gonçalves acrescenta o critério da “determinação legal ou mera indicação implícita”. Por outro lado, para a Dra. Alexandra, deverá prevalecer o critério do interesse ou do fim, enquanto critério adequado à qualificação da pessoa colectiva pública.[14]
Assim, sinteticamente, o critério do interesse ou do fim permite-nos distinguir a forma da entidade, que pode ser privada e, ao mesmo tempo, ontológica e funcionalmente pública.
Esta breve nota final acerca da qualificação de pessoa colectiva pública permite-nos, daí, retirar, em termo de conclusão, diversas ilações: em primeiro lugar, deparamos, na actualidade, com uma Administração diferente, que se assemelha à “Torre de Babel”; daí, decorre que surgem dúvidas relativamente à acepção de Administração Pública em sentido orgânico, com novas entidades, que acendem as querelas doutrinárias acerca da qualificação de entidades como sujeito de direito público.
Em face deste panorama, concentremo-nos, para finalizar, no seguinte excerto, retirado do site da FCG: “ A Fundação Calouste Gulbenkian é uma instituição portuguesa de direito privado e utilidade pública, cujos fins estatutários são a Arte, a Beneficiência, a Ciência e a Educação. Criada por disposição testamentária de Calouste Sarkis Gulbenkian, os seus estatutos foram aprovados pelo Estado Português a 18 de Julho de 1956”.

[1] Pedro Gonçalves, “Entidades Privadas com Poderes Públicos”, Almedina, Coimbra, 2008, página 282;
[2] Diogo Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, vol. I, 3ªed., 2ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2008, página 33;
[3] João Caupers, Direito administrativo I : guia de estudo,  3ª ed., Lisboa : Noticias, 1998. –  páginas 282 e 283
[4] Ibidem, p. 289

[6] Diogo Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, vol. I, 3ªed., 2ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2008, página 33;
[9] Gonçalves, “Entidades Privadas com Poderes Públicos”, Almedina, Coimbra, 2008, páginas 248 e 249;
[10] Ibidem, p. 249;
[11] Ibidem, p. 250;
[12] Ibidem, p. 253;
[13] Alexandra Leitão, Contratos interadministrativos , orient. Sérvula Correia. - Lisboa : Almedina, 2011, Tese de doutoramento, Ciências Jurídico-Políticas (Direito Administrativo), Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 2011;
[14] Ibidem;
[15] História e missão FCG. Disponível em http://www.gulbenkian.pt/historia consultado em 26.10.2012 [20:00].

Rita Correia, nº21924

Sem comentários:

Enviar um comentário