terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Relatório do Grupo da Golden Share


Relatório da Simulação de Direito Administrativo I

Privatização com constituição de uma Golden Share

Composição do grupo: Diogo Conchinhas, João Sousa, Mafalda Young, Matilde d’Orey

1 – Enquadramento
 O Governo pretende reformar o estatuto do serviço público de televisão pública em Portugal, e com a exteriorização dessa vontade iniciou-se um amplo e aceso debate na sociedade civil portuguesa sobre a forma mais recomendável do Governo agir. Este relatório pretende defender uma posição que não constava das quatro hipóteses integrantes da hipótese da simulação.
 Pensamos que a melhor forma de proteger o interesse público é privatizar os dois canais de televisão que estão em discussão, mediante um contrato de concessão a empresa privada adquirente para a realização do serviço público. A pedra de toque da nossa opção é a criação de uma golden share na futura empresa privada RTP. A defesa deste modelo será feita no ponto 2.2 do relatório, mas é importante elucidar desde já que uma golden share consiste em direitos especiais na posse do Estado, relativos ao papel do Estado nas empresas privatizadas, para defesa do interesse público.

2 – Análise

2.1 – O actual Regime Jurídico da RTP
O debate centra-se à volta do modelo de privatização a adoptar para a RTP (não estando excluída a manutenção do actual modelo). Para poder prosseguir tal discussão, é necessário traçar o regime jurídico actual da RTP.
 O artigo 38,5 da Constituição da República Portuguesa estabelece que “o Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público derádio e de televisão”, e este preceito tem de se concatenar com os artigos 38,4 e 38,6 CRP, que garantem “ a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico”. Esta obrigação constitucional consagrada no 38,5 CRP não pode ser desrespeitada pelo legislado, e assim, mesmo privatizando a RTP, deverá estipular com o novo concessionário “a manutenção e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão”, sob pena de inconstitucionalidade material.
 A empresa em discussão está definida na lei nº8/2007 (que procede à reestruturação da concessionária do serviço público de rádio e televisão) como Rádio e Televisão de Portugal, S.A. Quanto à sua natureza jurídica: é uma sociedade anónima (artigo 1,1 dos Estatutos, aprovados em anexo à Lei nº8/2007), de capitais exclusivamente públicos (1,3 Lei nº8/2007). O seu objecto é, nos termos do 3,1 dos Estatutos, “a prestação dos serviços públicos de rádio e de televisão, nos termos das Leis da Rádio e da Televisão e dos respectivos contratos de concessão. A RTP, S.A., pode ainda “prosseguir quaisquer actividades (…) relacionadas com a actividade de rádio e de televisão, na medida em que não comprometam ou afectem a prossecução do serviço público de rádio e de televisão”, designadamente “exploração da actividade publicitária” (3,2,a Estatutos)
Juridicamente, a RTP, S.A., é uma empresa pública S.A. (neste caso, os capitais são exclusivamente públicos), inserindo-se na administração indirecta sob forma privada.
 Da sua classificação como empresa pública S.A. resulta que lhe é aplicável o DL 300/2007 ( que altera o DL nº 558/99),  que estabelece o regime jurídico do sector empresarial do Estado. Este diploma consagra os direitos (poderes) do Estado sobre este tipo de empresas. Exerce a função accionista do Estado, nos termos do 10 deste DL 300/2007; tem o poder de emitir orientações de gestão (11 do mesmo diploma, doravante SEE); exerce controlo financeiro, apesar da margem de autoconformação da RTP (nos termos do 12 SEE), e as empresas têm deveres especiais de informação e controlo, tal como definido no 13SEE, bem como o direito de receber relatórios periódicos (13-A SEE).

2.2 – Proposta do Grupo
 O nosso grupo defende que a privatização da RTP deve ser feita garantindo a manutenção de direitos especiais sobre esta empresa após a sua privatização, através de uma golden share.
 “Golden share” é um conceito que designa direitos especiais que equivalem a permissões normativas de intervir na tomada de decisões  por parte de uma sociedade concreta ou na respectiva estrutura accionista, sempre que a esses direitos não esteja associada a detenção de uma participação no capital dessa empresa, ou que os direitos sejam desproporcionais ao montante da participação. A sua base legal pode resultar da lei ou dos estatutos da empresa em questão, e pode até envolver procedimentos administrativos. Há vários tipos, incluindo : - direito a restringir a aquisição de acções por terceiros; - direito a nomear gestores; - direito a vetar decisões empresariais estruturais (como a venda de activos estratégicos ou a mudança dos estatutos); - limitações ao número de gestores estrangeiros.
 Os direitos especiais podem ser temporários ou permanentes, e estes cessam quando o Estado venda as suas acções na empresa em concreto.
 Esta forma de agir tem inúmeras vantagens que importa considerar. O Governo pretende, com a privatização (através da concessão), a obtenção de meios financeiros (1), e a preservação da possibilidade de readquirir, posteriormente, uma posição dominante na empresa (2), pois a comunicação social tem falado frequentemente na inclusão de uma opção de recompra da RTP no contrato de concessão, sendo que esse direito poderá ser exercido decorridos dez anos de concessão. Assim, qualquer via de acção deve  tentar optimizar estas duas vertentes pretendidas pelo governo, sendo indispensável conciliar a obtenção de significativos meios financeiro com a manutenção de uma possibilidade de recompra da empresa por parte do Estado.
 Quanto ao primeiro vector, obtenção de dinheiro, a nossa solução aproxima-se da ideal: não coloca os problemas de diminuição de valor absoluto (e proporcional) que a privatização parcial acarreta, cessaria a necessidade de pagamento, por parte do Estado, de indemnizações compensatórias à RTP. Também permitiria evitar os problemas de motivação para a melhoria da empresa, pois a constituição da golden share tornaria inútil a estipulação de uma opção de recompra, e assim, os novos concessionários poderiam centrar-se na potencialização da empresa a médio e longo prazo. Quanto ao segundo vector, relacionado com a manutenção de uma posição na RTP, parece claro que nenhuma alternativa dá mais garantias de permanência do contraente público na empresa do que a golden share! Esta é a hipótese que mais garantias dá de prossecução eficaz e continuada do serviço público de informação na RTP, mesmo sob gestão privada.
Falta ainda expor duas vantagens muito relevantes. Actualmente todos os contribuintes pagam uma taxa de audiovisual para financiar a RTP. Logicamente, com a privatização total da empresa nos moldes defendidos pelo nosso grupo, essa taxa seria abolida, contribuindo para uma menor saturação dos contribuintes. Além disto, caso se opte por uma golden share com posição minoritária (oscilando entre os cinco e os dez porcento das acções da empresa), uma eventual alienação desta parcela (por motivos imprevisíveis de necessidade orçamental ou de política económica) significaria uma soma muito avultada de dinheiro, pois as golden share valem mais do que as outras acções (não porque o privado que as adquira ganhe os direitos especiais que o Estado tinha, mas porque assim o privado elimina esses direitos especiais) Desta forma, com a mesma privatização, receber-se-iam somas avultadas em, pelo menos, duas ocasiões.
 As golden share também têm sido utilizadas como forma de proteger as empresas recém-privatizadas de aquisições hostis por parte de concorrentes maiores, dando tempo às novas empresas para se consolidarem no mercado interno e expandir no externo, aumentando a visibilidade do país e a receita fiscal cobrada. Relativamente a esta última utilidade, nem é necessário resolver o problema de potenciais dificuldades por parte da Comissão Europeia, uma vez que estes direitos especiais são temporários e não costumam exceder os cinco anos, após os quais caducariam.
 Admitimos que há alguns entraves à nossa solução, mas são poucos, sendo que os críticos deste modelo apenas invocam as decisões do Tribunal Europeu de Justiça como fonte da impraticabilidade das golden share. No entanto, e como Paulo Câmara (no seu artigo The End of The “Golden” Age of Privatisations? – The Recent Decisions on Golden Shares), as decisões emitidas por este tribunal relativamente a disposições legais portuguesas, francesas e belgas sobre golden shares , proibindo as francesas e portuguesas, mas permitindo as belgas, não revelam uma negação absoluta das golden share, tendo tido estas decisões de Junho de 2002  um papel relevante na delimitação e definição da admissibilidade destes direitos especiais.
 Paulo da Câmara conclui que as decisões foram uma mensagem importante para os legisladores, uma vez que o critério de compatibilização das golden share com a lei comunitária pode ser resumido num teste de três pontos, devem ser não-discriminatórias, não-discricionárias e proporcionais:
- as golden share não devem discriminar em função da nacionalidade, se o fizerem violarão o artigo 56 do Tratado da CEE ;
 - as golden share não podem ser discricionárias, ou seja, o critério no qual se baseiam deve ser conhecido publicamente, e deve ser suficientemente claro. Não basta que a decisão administrativa seja ponderada ou fundamentada, é necessária a construção prévia de um critério, para que haja certeza por parte do adquirente da decisão administrativa. Além disso, o citério tem de ser objectivo;
 - as golden share devem ser objecto do critério da proporcionalidade, e este princípio tem dois requisitos cumulativos: adequação e necessidade. Em todas as decisões o tribunal reforçou que as restrições ao princípio da livre circulação de capitais têm de ser adequadas aos objectivos do Estado (designadamente, deu como adequada a restrição imposta pela Bélgica, cujo objectivo era garantir  energia mesmo durante uma crise) A análise da proporcionalidade é facilitada se a companhia privatizada operar numa área estratégica, no entanto, é necessário que as restrições nunca sejam discricionárias, pois restrições desse género nunca são proporcionais.
Assim, e como já expusemos, as decisões que pretensamente aboliram as golden share da Europa não mais fizeram do que proceder a uma delimitação, a uma afinação jurisprudencial do âmbito de aplicação destes direitos especiais. Não são de forma alguma um veto absoluto, apenas uma restrição.
 Não nos devemos esquecer que as golden share belgas foram admitidas (C-503/99), e que há muitos países que possuem golden share, de tipos variados, nomeadamente a Itália, a Hungria, o Reino Unido e a Bélgica.
Para que a admissibilidade da golden share se torne muito provável, há que reunir diversas condições, estabelecendo um critério objectivo (1), não discricionário (2), não-discriminatório (3), previsível (4), necessário e adequado (5). A situação relativa à RTP fica mais facilitada porque se trata de uma empresa que opera num sector estratégico da economia. A tarefa de elaborar um critério que obedeça aos requisitos acima referidos não é, de forma alguma, impossível nem sequer original, mas exige um tratamento extensivo que se torna incompatível com um relatório deste tipo. A adopção deste modelo resultaria na obtenção de grandes receitas orçamentais e, a médio prazo, incremento das receitas fiscais, bem como um incremento na visibilidade da empresa, ao mesmo tempo que não era extinta a capacidade interventiva do Estado no serviço público de informação.

3 – Conclusão
 O facto de a hipótese de privatização com constituição de uma golden share não ter sido proposta pelo governo não é sinal de demérito da proposta, é sim um forte indício da sua audácia e oportunidade social, financeira e política.
 Repugna ver a RTP controlada por pessoas que lideram um país que não respeita os direitos fundamentais do Homem (Angola), e parece que a Comissão Europeia admitiria uma cláusula que excluísse do corpo accionista da empresa pessoas que manifestamente violam ou negligenciam os direitos humanos, pelo que é oportuno jurídica e socialmente.
 Repugna ver companhias estratégicas como a RTP serem concessionadas a preços irrisórios, e uma golden share acautela os interesses económicos (por manter poder de decisão em momentos fundamentais) e financeiros (devido à soma conseguida com a venda da esmagadora maioria das acções do Estado
É necessário evitar a inércia política, temos de ser eficazes a proteger os principais activos nacionais. Mesmo que o Governo se comprometa a privatizar certas empresas ou sectores, deve ter a precaução de fazê-lo no calendário e moldes que, respeitando a constitucionalidade portuguesa e a legalidade comunitária, mais beneficiem o interesse público português.
Bibliografia:
- Paulo Câmara, The End of the “Golden” Age of Privatisations? – The Recent ECJ Decisions on Golden Shares
 - Kurt Weil/ Ekkard Lustig, Case Law of the European Court of Justice on “golden shares” of Member States in private corporations: comment on the ECJ decisions of  4 June 2002
 Christine O’Grady Putek, Limited but not Lost: A Comment on ECJ’s Golden Share Decisions

Sem comentários:

Enviar um comentário