Relatório da Simulação de Direito
Administrativo I
Privatização com constituição de uma Golden Share
Composição
do grupo: Diogo Conchinhas, João Sousa, Mafalda Young, Matilde d’Orey
1
– Enquadramento
O Governo pretende reformar o estatuto do
serviço público de televisão pública em Portugal, e com a exteriorização dessa
vontade iniciou-se um amplo e aceso debate na sociedade civil portuguesa sobre
a forma mais recomendável do Governo agir. Este relatório pretende defender uma
posição que não constava das quatro hipóteses integrantes da hipótese da
simulação.
Pensamos que a melhor forma de proteger o
interesse público é privatizar os dois canais de televisão que estão em
discussão, mediante um contrato de concessão a empresa privada adquirente para
a realização do serviço público. A pedra de toque da nossa opção é a criação de
uma golden share na futura empresa privada RTP. A defesa deste modelo será
feita no ponto 2.2 do relatório, mas é importante elucidar desde já que uma
golden share consiste em direitos especiais na posse do Estado, relativos ao
papel do Estado nas empresas privatizadas, para defesa do interesse público.
2
– Análise
2.1
– O actual Regime Jurídico da RTP
O
debate centra-se à volta do modelo de privatização a adoptar para a RTP (não
estando excluída a manutenção do actual modelo). Para poder prosseguir tal
discussão, é necessário traçar o regime jurídico actual da RTP.
O artigo 38,5 da Constituição da República
Portuguesa estabelece que “o Estado assegura a existência e o funcionamento de
um serviço público derádio e de televisão”, e este preceito tem de se
concatenar com os artigos 38,4 e 38,6 CRP, que garantem “ a liberdade e a
independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o
poder económico”. Esta obrigação constitucional consagrada no 38,5 CRP não pode
ser desrespeitada pelo legislado, e assim, mesmo privatizando a RTP, deverá
estipular com o novo concessionário “a manutenção e o funcionamento de um serviço
público de rádio e de televisão”, sob pena de inconstitucionalidade material.
A empresa em discussão está definida na lei
nº8/2007 (que procede à reestruturação da concessionária do serviço público de
rádio e televisão) como Rádio e Televisão de Portugal, S.A. Quanto à sua
natureza jurídica: é uma sociedade anónima (artigo 1,1 dos Estatutos, aprovados
em anexo à Lei nº8/2007), de capitais exclusivamente públicos (1,3 Lei
nº8/2007). O seu objecto é, nos termos do 3,1 dos Estatutos, “a prestação dos
serviços públicos de rádio e de televisão, nos termos das Leis da Rádio e da
Televisão e dos respectivos contratos de concessão. A RTP, S.A., pode ainda
“prosseguir quaisquer actividades (…) relacionadas com a actividade de rádio e
de televisão, na medida em que não comprometam ou afectem a prossecução do
serviço público de rádio e de televisão”, designadamente “exploração da
actividade publicitária” (3,2,a Estatutos)
Juridicamente,
a RTP, S.A., é uma empresa pública S.A. (neste caso, os capitais são exclusivamente
públicos), inserindo-se na administração indirecta sob forma privada.
Da sua classificação como empresa pública S.A.
resulta que lhe é aplicável o DL 300/2007 ( que altera o DL nº 558/99), que estabelece o regime jurídico do sector
empresarial do Estado. Este diploma consagra os direitos (poderes) do Estado
sobre este tipo de empresas. Exerce a função accionista do Estado, nos termos
do 10 deste DL 300/2007; tem o poder de emitir orientações de gestão (11 do
mesmo diploma, doravante SEE); exerce controlo financeiro, apesar da margem de
autoconformação da RTP (nos termos do 12 SEE), e as empresas têm deveres
especiais de informação e controlo, tal como definido no 13SEE, bem como o
direito de receber relatórios periódicos (13-A SEE).
2.2
– Proposta do Grupo
O nosso grupo defende que a privatização da
RTP deve ser feita garantindo a manutenção de direitos especiais sobre esta
empresa após a sua privatização, através de uma golden share.
“Golden share” é um conceito que designa
direitos especiais que equivalem a permissões normativas de intervir na tomada
de decisões por parte de uma sociedade
concreta ou na respectiva estrutura accionista, sempre que a esses direitos não
esteja associada a detenção de uma participação no capital dessa empresa, ou
que os direitos sejam desproporcionais ao montante da participação. A sua base
legal pode resultar da lei ou dos estatutos da empresa em questão, e pode até
envolver procedimentos administrativos. Há vários tipos, incluindo : - direito
a restringir a aquisição de acções por terceiros; - direito a nomear gestores;
- direito a vetar decisões empresariais estruturais (como a venda de activos
estratégicos ou a mudança dos estatutos); - limitações ao número de gestores
estrangeiros.
Os direitos especiais podem ser temporários ou
permanentes, e estes cessam quando o Estado venda as suas acções na empresa em
concreto.
Esta forma de agir tem inúmeras vantagens que
importa considerar. O Governo pretende, com a privatização (através da
concessão), a obtenção de meios financeiros (1), e a preservação da
possibilidade de readquirir, posteriormente, uma posição dominante na empresa
(2), pois a comunicação social tem falado frequentemente na inclusão de uma
opção de recompra da RTP no contrato de concessão, sendo que esse direito
poderá ser exercido decorridos dez anos de concessão. Assim, qualquer via de
acção deve tentar optimizar estas duas
vertentes pretendidas pelo governo, sendo indispensável conciliar a obtenção de
significativos meios financeiro com a manutenção de uma possibilidade de
recompra da empresa por parte do Estado.
Quanto ao primeiro vector, obtenção de
dinheiro, a nossa solução aproxima-se da ideal: não coloca os problemas de
diminuição de valor absoluto (e proporcional) que a privatização parcial acarreta,
cessaria a necessidade de pagamento, por parte do Estado, de indemnizações
compensatórias à RTP. Também permitiria evitar os problemas de motivação para a
melhoria da empresa, pois a constituição da golden share tornaria inútil a
estipulação de uma opção de recompra, e assim, os novos concessionários
poderiam centrar-se na potencialização da empresa a médio e longo prazo. Quanto
ao segundo vector, relacionado com a manutenção de uma posição na RTP, parece
claro que nenhuma alternativa dá mais garantias de permanência do contraente
público na empresa do que a golden share! Esta é a hipótese que mais garantias
dá de prossecução eficaz e continuada do serviço público de informação na RTP,
mesmo sob gestão privada.
Falta ainda expor duas vantagens
muito relevantes. Actualmente todos os contribuintes pagam uma taxa de
audiovisual para financiar a RTP. Logicamente, com a privatização total da
empresa nos moldes defendidos pelo nosso grupo, essa taxa seria abolida,
contribuindo para uma menor saturação dos contribuintes. Além disto, caso se
opte por uma golden share com posição minoritária (oscilando entre os cinco e
os dez porcento das acções da empresa), uma eventual alienação desta parcela
(por motivos imprevisíveis de necessidade orçamental ou de política económica)
significaria uma soma muito avultada de dinheiro, pois as golden share valem
mais do que as outras acções (não porque o privado que as adquira ganhe os
direitos especiais que o Estado tinha, mas porque assim o privado elimina esses
direitos especiais) Desta forma, com a mesma privatização, receber-se-iam somas
avultadas em, pelo menos, duas ocasiões.
As golden share também têm sido utilizadas
como forma de proteger as empresas recém-privatizadas de aquisições hostis por
parte de concorrentes maiores, dando tempo às novas empresas para se
consolidarem no mercado interno e expandir no externo, aumentando a
visibilidade do país e a receita fiscal cobrada. Relativamente a esta última
utilidade, nem é necessário resolver o problema de potenciais dificuldades por
parte da Comissão Europeia, uma vez que estes direitos especiais são
temporários e não costumam exceder os cinco anos, após os quais caducariam.
Admitimos que há alguns entraves à nossa
solução, mas são poucos, sendo que os críticos deste modelo apenas invocam as
decisões do Tribunal Europeu de Justiça como fonte da impraticabilidade das
golden share. No entanto, e como Paulo Câmara (no seu artigo The End of The “Golden” Age of
Privatisations? – The Recent Decisions on Golden Shares), as decisões
emitidas por este tribunal relativamente a disposições legais portuguesas,
francesas e belgas sobre golden shares , proibindo as francesas e portuguesas,
mas permitindo as belgas, não revelam uma negação absoluta das golden share,
tendo tido estas decisões de Junho de 2002
um papel relevante na delimitação e definição da admissibilidade destes
direitos especiais.
Paulo da Câmara conclui que as decisões foram
uma mensagem importante para os legisladores, uma vez que o critério de
compatibilização das golden share com a lei comunitária pode ser resumido num
teste de três pontos, devem ser não-discriminatórias, não-discricionárias e
proporcionais:
- as golden share não devem
discriminar em função da nacionalidade, se o fizerem violarão o artigo 56 do
Tratado da CEE ;
- as golden share não podem ser
discricionárias, ou seja, o critério no qual se baseiam deve ser conhecido
publicamente, e deve ser suficientemente claro. Não basta que a decisão
administrativa seja ponderada ou fundamentada, é necessária a construção prévia
de um critério, para que haja certeza por parte do adquirente da decisão
administrativa. Além disso, o citério tem de ser objectivo;
- as golden share devem ser objecto do
critério da proporcionalidade, e este princípio tem dois requisitos
cumulativos: adequação e necessidade. Em todas as decisões o tribunal reforçou
que as restrições ao princípio da livre circulação de capitais têm de ser
adequadas aos objectivos do Estado (designadamente, deu como adequada a
restrição imposta pela Bélgica, cujo objectivo era garantir energia mesmo durante uma crise) A análise da
proporcionalidade é facilitada se a companhia privatizada operar numa área
estratégica, no entanto, é necessário que as restrições nunca sejam
discricionárias, pois restrições desse género nunca são proporcionais.
Assim, e como já expusemos, as
decisões que pretensamente aboliram as golden share da Europa não mais fizeram
do que proceder a uma delimitação, a uma afinação jurisprudencial do âmbito de
aplicação destes direitos especiais. Não são de forma alguma um veto absoluto,
apenas uma restrição.
Não nos devemos esquecer que as golden share
belgas foram admitidas (C-503/99), e que há muitos países que possuem golden
share, de tipos variados, nomeadamente a Itália, a Hungria, o Reino Unido e a Bélgica.
Para que a admissibilidade da
golden share se torne muito provável, há que reunir diversas condições,
estabelecendo um critério objectivo (1), não discricionário (2),
não-discriminatório (3), previsível (4), necessário e adequado (5). A situação
relativa à RTP fica mais facilitada porque se trata de uma empresa que opera
num sector estratégico da economia. A tarefa de elaborar um critério que
obedeça aos requisitos acima referidos não é, de forma alguma, impossível nem
sequer original, mas exige um tratamento extensivo que se torna incompatível
com um relatório deste tipo. A adopção deste modelo resultaria na obtenção de
grandes receitas orçamentais e, a médio prazo, incremento das receitas fiscais,
bem como um incremento na visibilidade da empresa, ao mesmo tempo que não era
extinta a capacidade interventiva do Estado no serviço público de informação.
3 – Conclusão
O facto de a hipótese de privatização com
constituição de uma golden share não ter sido proposta pelo governo não é sinal
de demérito da proposta, é sim um forte indício da sua audácia e oportunidade
social, financeira e política.
Repugna ver a RTP controlada por pessoas que
lideram um país que não respeita os direitos fundamentais do Homem (Angola), e
parece que a Comissão Europeia admitiria uma cláusula que excluísse do corpo
accionista da empresa pessoas que manifestamente violam ou negligenciam os
direitos humanos, pelo que é oportuno jurídica e socialmente.
Repugna ver companhias estratégicas como a RTP
serem concessionadas a preços irrisórios, e uma golden share acautela os
interesses económicos (por manter poder de decisão em momentos fundamentais) e
financeiros (devido à soma conseguida com a venda da esmagadora maioria das
acções do Estado
É
necessário evitar a inércia política, temos de ser eficazes a proteger os
principais activos nacionais. Mesmo que o Governo se comprometa a privatizar
certas empresas ou sectores, deve ter a precaução de fazê-lo no calendário e
moldes que, respeitando a constitucionalidade portuguesa e a legalidade
comunitária, mais beneficiem o interesse público português.
Bibliografia:
- Paulo Câmara, The End of the
“Golden” Age of Privatisations? – The Recent ECJ Decisions on Golden Shares
- Kurt Weil/ Ekkard Lustig, Case Law of the European Court of Justice on
“golden shares” of Member States in private corporations: comment on the ECJ
decisions of 4 June 2002
Christine O’Grady Putek, Limited but not Lost: A Comment on ECJ’s
Golden Share Decisions
Sem comentários:
Enviar um comentário