O estatuto
jurídico das Universidades Públicas à luz do Decreto-lei 62/2007
A questão de
perceber qual o estatuto jurídico das instituições de ensino superior tem preocupado
diversos pensadores e juristas, desde Vasco Pereira da Silva a Freitas do
Amaral.
Em diferentes
professores encontramos diferentes opiniões, defendendo uns, que as
universidades recaem numa administração autónoma, e outros que pertencem à administração
indirecta.
De forma muito
resumida, por administração autónoma entende-se a existência de uma
pessoa colectiva pública que prossegue fins próprios sob forma própria. Os
interesses públicos seriam melhor representados por estas ‘’sub-comunidades’’
da autoridade política, tendo as universidades públicas uma verdadeira
autonomia face ao Estado.
Os professores
Jorge Miranda, Vasco Pereira da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa defendem esta
posição.
À administração
indirecta está subjacente uma ideia de ligação rigorosa (não-autonomia)
face ao Estado e aos seus poderes. Seria composta por diferentes entidades com
personalidade jurídica pública que satisfariam as necessidades colectivas.
Para
o professor Freitas do Amaral, as universidades pertenceram à administração indirecta,
pois são uma espécie de institutos públicos.
Para a elaborar
o presente artigo partirei da aceitação de que às instituições de ensino
superior se admite o modelo da administração autónoma.
O art. 76º da Constituição da
República Portuguesa (CRP) prevê o primeiro tipo que referi, a administração autónoma,
referindo-se expressamente ‘’autonomia estatutária, científica (…)’’.
Começarei por
fazer uma pequena introdução histórica, e tentarei mostrar, posteriormente, algumas
disposições consagradas no RJIES, nomeadamente relativas à forma de
descentralização administrativa na esfera universitária, mais precisamente
quanto à possibilidade de transformação das instituições públicas de ensino
superior de natureza administrativa em instituições públicas de ensino
superior de natureza fundacional.
Para perceber a autonomia
jurídica das universidades é preciso atender a alguns eventos históricos:
Depois do
modelo centralizador, característico do Estado Absoluto, surge um modelo liberal
germânico de universidade, inspirado em princípios de liberdade e progresso
científico. Procurando este novo modelo, instituir uma autonomia de governo
científico e pedagógico perante o Estado.
Estes ideais
foram reconhecidos na 1ª República, onde foi atribuído às universidades
públicas, não só, personalidade jurídica como, responsabilidade pelo seu
autogoverno económico e científico. Neste período, as universidades públicas
assumem um fim social de prossecução do interesse público.
A Ditadura
Militar e o Período do Estado Novo representaram um verdadeiro retrocesso das
autonomias conquistadas durante a 1ª República.
Esta autonomia
de governo das universidades públicas regressa, primeiro através de algumas
leis dispersas relativas a organização e gestão dos estabelecimentos do ensino
superior e, mais tarde, com a revisão constitucional de 1982 e a consequente
restauração das autonomias científica, pedagógica, administrativa e financeira,
as quais se acrescenta a autonomia estatuária com a revisão de 1989.
A título de
exemplo, a autonomia científica está consagrada na Constituição, nos artigos 42º/
1 e 2 e 43º da CRP.
Mas há para além desta, outras autonomias
administrativas constitucionalmente consagradas.
De
acordo com alguma doutrina, às instituições públicas do ensino superior é dado
o poder para a prática de actos administrativos em geral, incluindo actos não
sujeitos ao controlo de outro órgão.
Apesar de o
art. 76º/2 (CRP) não referir expressamente
autonomia regulamentar, podemos admitir que a universidade pública goza
de poder de emissão de normas gerais e abstractas, com eficácia externa
relativa às relações jurídicas com outras universidades. Isto traduz-se
efectivamente numa reserva normativa, no entanto, está limitada a
matérias reservadas à universidade mas fora do domínio da reserva do
legislador.
Por matérias
reservadas a universidade podemos entender: determinação do órgão competente
para o exercício da autonomia regulamentar assim como a sua respectiva
competência (art. 112º/7 CRP).
O mesmo
art.76º/2 expõe uma autonomia estatutária. Esta autonimia consiste na
faculdade de ‘’auto-organização’’, isto é, de organizar os seus próprios
estatutos e definir a sua forma de organização: definição dos órgãos e competências;
fins a prosseguir e princípios estruturantes.
Tais estatutos
da universidade devem ser determinados pela vontade dos seus membros.
Ao Estado cabe
apenas delimitar o exercício desta autonomia, determinando os órgãos e as
respectivas competências, sempre de forma genérica e não taxativa, em razão do
espeço de liberdade que a autonomia estatutária permite (art. 112º/7 CRP)
Outra
que importa referir, é a autonomia financeira. Esta tem como aspectos
essenciais: a capacidade de gerir receitas próprias, de as administrar e delas
dispor, assim como realizar despesas, de acordo com um orçamento privativo.
A
autodeterminação universitária pressupõe não só um auto-governo (nas matérias
que não sejam reservadas à lei) como pressupostos de responsabilização dos
respectivos titulares, sempre sujeitos à responsabilidade civil
extra-contratual do Estado e demais entidades públicas, pelos danos causados no
exercício das suas funções, nos termos do art. 22º CRP e art. 157º/1/2 RJIES.
Estes órgãos estarão ainda
sujeitos ao regime da responsabilidade financeira. O poder de controlo pertence
ao Tribunal de Contas (art.158º) do qual pode resultar umas responsabilidade
sancionatória (aplicação de multas aos agentes) ou reintegratória (reposição de
valores por parte dos agentes responsáveis pelo ilícito financeiro).
Estão presentes
no RJIES (decreto-lei 62/2007) dois modelos de descentralização administrativa
no âmbito do ensino superior: (i) Instituições de ensino superior públicas de natureza
administrativa e (ii) Instituições públicas de ensino superior de natureza
fundacional.
I.
Se nada for dito expressamente, as instituições de
ensino superior público têm natureza administrativa. O art.9º/1 do RJIES profere
‘’As instituições de ensino superior públicas são pessoas colectivas de direito
publico’’, podendo ainda revestir a forma de fundações públicas de direito
privado.
As
instituições de ensino superior públicas estão, a partida, sujeitas ao regime aplicável
as demais pessoas colectivas de direito público de natureza administrativa
(podendo-se recorrer à lei quadro dos institutos públicos, subsidariamente)
II.
O modelo administrativo das universidades pode
ser fundacional.
A
escolha do modelo de natureza administrativa ou fundacional a adoptar, não cabe
a estas instituições mas antes ao Governo, uma vez que tal decisão não pertence
a esfera de competência daquela, no exercício da sua função administrativa (art.267º/2
CRP). A transformação institucional não se integra nas autonomias constitucional
ou legalmente consagradas.
A
iniciativa e decisão última de transformação caberá ao Governo!
No
entanto, no RJIES, o legislador confere as instituições de ensino superior públicas
a iniciativa de propôr ao Governo a alteração do respectivo modelo
institucional, deixando-lhes a responsabilidade e um juízo de oportunidade sobre
a ‘’bondade’’ da solução (art.2º, última parte; art.267º/1 CRP) (art.129º /1/4/9/10
RJIES).
O
nº 5 do art.129º do RJIES estabelece que uma escola (art.13º/4) pode (excepcionalmente)
solicitar ao Governo a sua transformação. Ora, isto parece ser um problema: a
escola é uma unidade orgânica da instituição de ensino superior público e por
isso não dotada de uma autonomia de governo. O facto de sozinha poder despoltar
um processo de transformação institucional não parece muito coerente, uma vez
que esta transformação tem implicações ao nível do governo da universidade inteira
(art.13º/2; art.67º,d); art.126º/4 RJIES). A escola não se assemelha a uma
entidade autónoma e por isso não se percebe porque é que esta iniciativa do processo
de transformação possa acontecer sem a autorização da respectiva instituição de
ensino superior público (bastará a junção de uma parecer não vinculativo
ao processo)
O
art.129º/5 parece um pouco incompatível com as autonomias consagradas no art.11º/1
RJIES.
Outro aspecto que
é importante realçar é o seguinte, por exemplo, a autonomia científica, pedagógica,
administrativa e financeira, não pode ser submetida a negociações porque tal
resultaria num retrocesso das autonomias conquistadas e numa sujeição das instituições
de ensino superior ao funcionalismo estatal.
As instituições
de ensino superior públicas e as de ensino superior privadas não estão sujeitas
a uma definição estatal dos respectivos projectos institucionais ou programas
de desenvolvimento. Estarão apenas sujeitos a um controlo de legalidade
(art.27º/2,g); art.11º/5 RJIES).
No desenrolar
do processo de transformação numa instituição de ensino superior de natureza
fundacional, as instituições interessadas podem ver cessar o procedimento por acto
do Estado que determine a referida conclusão por falta de acordo.
Ainda assim, a
parte cujas expectativas saíram frustradas, tem algumas hipóteses. A título de
exemplo:
i)Podem as instituições de ensino
superior público, lesadas com a decisão de conclusão do procedimento por falta
de acordo em relação ao projecto de transformação (para natureza fundacional) e
ao programa de desenvolvimento, pedir uma acção de responsabilidade civil
contra o Estado pelo exercício da função administrativa, baseando-se na violação
de princípios constitucional e legalmente previstos, nomeadamente: art.22º e
76º/2 CRP; art.1º, 7º e 11º /1).
ii) impugnar o acto que põe fim
ao procedimento assentado na recusa de aprovação e dos programas referidos
(art.66º CPTA , Código de processo dos Tribunais Administrativos).
Para conclusão,
parece que este Decreto-lei 62/2007, veio dar mais autonomia as instituições de
ensino superior público, na medida em que lhes permite preferir, baseando-se no
bom senso (claro) qual o modelo que mais lhes convém adoptar (natureza
administrativa ou fundacional).
É importante
relembrar que o que parece importar neste RJIES, é que não haja um retrocesso
nas autonomias, nomeadamente científicas ou financeiras, conquistadas.
Por último,
as instituições de ensino superior públicas são criadas pelo Estado como forma
de garantir liberdades fundamentais, como a de aprender (art.43º/1 CRP).
As instituições
de ensino superior públicas constituem uma forma de descentralização administrativa instrumental ao serviço do interesse
público!
Bibliografia:
Diogo Freitas do Amaral – ‘’Curso de Direito Administrativo’’
Cláudia Janardo Gonçalves -‘’ O acto constitutivo das fundações
públicas de direito privado’’
Marcelo Rebelo de Sousa – ‘’Direito Administrativo’’
Legislação:
Constituição da Républica Portuguesa
Decreto-lei 62/2007 Regime Jurídico das Instituições de
Ensino Superior
Código de processo dos Tribunais Administrativos
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