sexta-feira, 30 de novembro de 2012


Relação Jurídico-administrativa

Evolução:

1-Na doutrina clássica a relação jurídica era apresentada como uma relação de poder, isto é, havia grande dificuldade em conceber a existência de verdadeiros direitos subjectivos dos cidadãos. Assim sendo, os particulares não eram considerados como verdadeiros sujeitos de Direito, sendo meros “objectos” do poder administrativo e, enquanto tal, sujeitos passivos na relação jurídica. Nota-se o predomínio da visão autoritária de relação jurídica, e de uma administração agressiva.
Mais tarde, a relação jurídico-administrativa é substituída pela ideia central de procedimento e processo, ideia essa que leva a melhor a relação processual (que tem como finalidade regular os processos –como se iniciam , desenvolvem e terminam) sobre a relação jurídica substantiva (aquela que designa um complexo de normas que regem as relações jurídicas, definindo a sua matéria, opondo-se ao direito adjectivo ou formal, que é o direito processual ). Tal significou a degradação das relações substantivas: estas eram entendidas como ligações meramente processuais – nas quais o particular é visto, ainda, como mero objecto do poder administrativo.

2-Numa visão mais moderna (concepção moderno-clássica), a relação jurídica é vista como um instituto que limita a aplicabilidade das relações autoritárias da administração. Esta é definida através dos actos administrativos e, como tal, o poder administrativo é visto como uma possibilidade de criar e impor, unilateralmente, consequências jurídicas aos demais particulares. Esta ideia está estritamente limitada ao domínio do acto administrativo, sendo que a relação jurídica foi descurada a favor das formas de actuação.
 
3- Numa terceira fase, admite-se a aceitação da existência de verdadeiras relações jurídicas administrativas, e não apenas de relações de poder. A administração, que tinha um carácter agressivo, passa a ter carácter prestador, sendo que, nesta, a administração e os privados actuam como sujeitos de direito, dotados de direitos e deveres recíprocos.
 
4- Já sobre o paradigma do Estado social, a relação jurídica é apresentada como a noção central do “novo direito administrativo”: esta era constituída entre dois ou mais sujeitos jurídicos, pelo que são de considerar como relações jurídicas administrativas, todas as ligações jurídicas entre sujeitos, segundo o Direito Administrativo.
Em suma: numa primeira fase a relação administrativa não integrava e não tinha em vista os interesses (legítimos) dos particulares, sendo estes meros “objectos” do poder administrativo. Já numa segunda fase, ainda com a manifestação de alguns rasgos de uma administração agressiva e totalitária, as relações jurídicas bastavam-se aos actos administrativos. Desta forma, a administração poderia, unilateralmente e, mais uma vez, sem ter em conta os legítimos interesses dos cidadãos, criar e impor consequências administrativas para estes (prevalência das formas de actuação).
Com o desaparecimento do paradigma liberal da administração agressiva, e sob a égide do Estado social, o instituto do acto administrativo conhece limitações, na medida em que conhece a integralidade do relacionamento entre a administração e os privados; o acto administrativo deixa de ser a forma exclusiva de actuação administrativa.

 
A relação administrativa é um instituto muito mais amplo que o acto administrativo: vence as suas limitações e permite explicar os vínculos jurídicos existentes entre a administração e os particulares, dando real resposta às exigências da administração moderna. Mas tal instituto não faz desaparecer o acto administrativo, pelo contrário, integra-o, concebendo-o como um dos factos susceptíveis de criar, modificar ou extinguir essas mesmas relações jurídicas (ao lado dos contratos, comportamentos materiais, etc).

A doutrina da relação jurídica explica, assim, os fenómenos de participação (de privados ou mesmo de outras entidades públicas) no procedimento administrativo (ART 8º do Código do Procedimento Administrativo): este surge como um instrumento de regulação de relações jurídicas, cujos intervenientes são chamados a actuar para defesa das suas posições jurídicas substantivas.
É necessário entender que, os direitos subjectivos dos indivíduos (e grupos) se dividem em dois aspectos que, consequentemente apresentam dimensões diferentes: (1) aspectos substantivos (definição supra citada); (2) dimensão procedimental, em que se atribui, aos seus titulares, faculdades de intervenção e oportunidades de influenciação do procedimento administrativo, permitindo aos particulares defender preventivamente as suas posições substantivas e participar activamente no processo decisivo de administração.

De acordo com o entendimento do Professor Regente VASCO PEREIRA DA SILVA, há duas perspectivas actuais de entendimento do conceito de relação jurídica (o que as divide é o modo de conceber o momento de criação dessa mesma relação: primeiramente, aquela que é directamente criada pela norma jurídica, ou o instituto que, para existir, necessita da concretização de um facto criador. Como tal, o Professor defende que, e em conformidade com o Professor JORGE MIRANDA, a relação jurídica é apenas uma das várias situações jurídicas possíveis, sendo que esta corresponde a um esquema relacional caracterizada pelos vínculos jurídicos entre particulares e administração (mas também entre as autoridades administrativas relativamente umas às outras). Esta é então instrumento de análise das relações entre particulares e administração, correspondendo à maior e mais importante parcela das situações administrativas, ainda que não correspondendo à totalidade dos fenómenos jurídicos – não se pretende que este instituto seja monopolista e exclusivista, ao conseguir abarcar todos os fenómenos jurídicos.
Esta realça, igualmente, os direitos dos cidadãos e não o poder da administração (em contraposição à doutrina clássica do acto administrativo): o particular já recebe tratamento como sendo sujeito de direito, deixando de ser mero “objecto” da administração, em que não lhe são reconhecidos quaisquer direitos e deveres (precisamente, por não ser considerado sujeito de direito, relativamente à administração), sendo colocado em posição de paridade jurídica face à administração. A relação jurídico-administrativa é revestida de conteúdo juridicamente relevante, visto reconhecer direitos e deveres previstos na constituição e na lei, às partes que mantêm tal relação recíproca.
Portanto, para que haja uma relação jurídica, o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA entende ser necessário que esta compreenda, ou uma previsão legal, ou um facto jurídico criador, como actos administrativos, intervenção do particular no procedimento administrativo (ART 8º do Código do Procedimento Administrativo conjugado com o ART 268º da Constituição da República Portuguesa).
Os fenómenos de participação (privada ou de entidades públicas) no procedimento, atribui aos particulares a faculdade de intervenção e oportunidades de influenciar o procedimento administrativo (através da participação nas decisões ou deliberações que lhes digam respeito) e, portanto, a oportunidade de defenderem as suas posições substantivas, intervenção essa que está associada ao actual entendimento dos direitos fundamentais (como direitos de e ao procedimento).
Como tal, antes da verificação de 1 facto jurídico criador da relação jurídica, esta não existe, existindo somente uma previsão legal de direitos e deveres (como já referimos, recíprocos) susceptíveis de a vir integrar. Só mediante qualquer facto jurídico é que a mera previsão legal de relação jurídica pode vir a ser aplicada, passando a regulá-la.

Fazendo uma análise atenta cerca dos direitos fundamentais, o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA defende a sua “dupla natureza”, apondo-lhes duas vertentes: vertente garantista, enquanto sendo direitos subjectivos; vertente social, enquanto são “elementos fundamentais da ordem objectiva da comunidade”, como valores ou fins que esta se propõe a prosseguir.
Os direitos fundamentais concedem a protecção dos indivíduos face a agressões provindas dos poderes administrativos (ART 266º/1 da CRP e ART 4º do CPA – direitos constitucionais concedidos aos cidadãos) e, consequentemente, limitam os actos da administração.
Esta “dupla natureza” explica a lógica de “agressão-defesa” pois, os direitos fundamentais são susceptíveis de invocação directa pelos particulares nas relações jurídicas (enquanto direitos subjectivos), e a vinculação objectiva do legislador ordinário, que não pode pôr em causa tais direitos através das normas de direito administrativo, sob pena de inconstitucionalidade e de lesão dos direitos subjectivos dos seus titulares.
Tendo por base o entendimento do Professor MARCELO REBELO DE SOUSA, o Princípio da legalidade (ART 3º do CPA), um dos Princípios disciplinadores da actuação administrativa que a submete aos termos definidos pela lei e pelo direito, dentro dos limites dos poderes que lhes são atribuídos, poder-se-á concluir que a administração terá sempre que ter em conta e respeitar, nas suas formas de actuação, os interesses dos particulares, estando sujeita, inclusivamente, aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, na constância de eventual afectação das posições jurídicas dos particulares face à administração (ART 5º do CPA). O Professor explica ainda que, o princípio da legalidade compreende duas vertentes: (1)objectiva; (2) subjectiva, que se refere ao respeito dos direitos e interesses dos administrados, legalmente protegidos - tutela directa e imediata de uma realidade substantiva - (ART 266º da CRP e ART 4º do CPA). Defende ainda que, dentro dos direitos subjectivos, gozam de protecção reforçada e de aplicação directa dos preceitos constitucionais sem a intervenção da lei, os direitos, liberdades e garantias (e outros direitos de natureza análoga) – ARTS 17º e 18º da CRP.
Na verdade, de acordo com o princípio da decisão (ART 9º do CPA) e com o princípio da colaboração da administração com os particulares (ART 7º do CPA), a administração tem o dever de se pronunciar sobre os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados pelos particulares, procurando sempre assegurar a sua adequada participação na função administrativa, tendo em conta os seus direitos subjectivos (capacidade à disposição; possibilidade de invocarem directamente os direitos fundamentais).
Na própria caracterização do Direito Administrativo, MARCELO REBELO DE SOUSA, admite que o Direito Administrativo “é simultaneamente um meio de afirmação da vontade do Poder, e um meio de protecção do cidadão contra o Estado”. Na verdade, o Professor faz a distinção entre três tipos de normas administrativas: orgânicas, normas que regulam a organização da administração; funcionais, onde se destacam as normas processuais, que regulam o modo de agir específico da administração pública, estabelecendo processos de funcionamento, métodos de trabalho, formalidades a cumprir; relacionais, normas que regulam as relações entre particulares e administração no exercício da actividade administrativa. Conclui ainda que o Direito Administrativo é a “procura permanente de harmonização das exigências da acção administrativa, na prossecução dos interesses gerais, com as exigências da garantia dos particulares, na defesa dos seus direitos e interesses legítimos” (harmonização das exigências da administração e das exigências dos particulares). Assim, as normas administrativas não conferem apenas poderes de autoridade à administração, impondo restrições à acção da administração, especialmente no que concerne às exigências da garantia dos particulares, com reforço da protecção dos direitos, liberdades e garantias (ART 266º/1 da CRP e ART 4º do CPA).
Concluindo, a partir do momento em que se consideram a administração e os particulares como sujeitos de direito, dotados de direitos e deveres recíprocos, verifica-se que esta não pode prosseguir os interesses públicos de forma autoritária, na medida em que terá de actuar, relativamente aos particulares, observando as várias limitações que lhe são impostas: com base em normas jurídicas, respeitando os interesses e os direitos fundamentais legalmente protegidos dos cidadãos.
 



 

 

 

 

 
 

 

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