Relação Jurídico-administrativa
Evolução:
1-Na doutrina clássica a relação jurídica
era apresentada como uma relação de poder, isto é, havia grande dificuldade em
conceber a existência de verdadeiros direitos subjectivos dos cidadãos. Assim
sendo, os particulares não eram considerados como verdadeiros sujeitos de Direito,
sendo meros “objectos” do poder administrativo e, enquanto tal, sujeitos
passivos na relação jurídica. Nota-se o predomínio da visão autoritária de
relação jurídica, e de uma administração agressiva.
Mais tarde,
a relação jurídico-administrativa é substituída pela ideia central de
procedimento e processo, ideia essa que leva a melhor a relação processual (que
tem como finalidade regular os processos –como se iniciam , desenvolvem e
terminam) sobre a relação jurídica substantiva (aquela que designa um complexo
de normas que regem as relações jurídicas, definindo a sua matéria, opondo-se
ao direito adjectivo ou formal, que é o direito processual ). Tal significou a degradação
das relações substantivas: estas eram entendidas como ligações meramente
processuais – nas quais o particular é visto, ainda, como mero objecto do poder
administrativo.
2-Numa visão
mais moderna (concepção moderno-clássica), a relação jurídica é vista como um
instituto que limita a aplicabilidade das relações autoritárias da administração.
Esta é definida através dos actos administrativos e, como tal, o poder
administrativo é visto como uma possibilidade de criar e impor,
unilateralmente, consequências jurídicas aos demais particulares. Esta ideia está
estritamente limitada ao domínio do acto administrativo, sendo que a relação jurídica
foi descurada a favor das formas de actuação.
3- Numa
terceira fase, admite-se a aceitação da existência de verdadeiras relações jurídicas
administrativas, e não apenas de relações de poder. A administração, que tinha
um carácter agressivo, passa a ter carácter prestador, sendo que, nesta, a administração
e os privados actuam como sujeitos de direito, dotados de direitos e deveres
recíprocos.
4- Já sobre
o paradigma do Estado social, a relação jurídica é apresentada como a noção
central do “novo direito administrativo”: esta era constituída entre dois ou
mais sujeitos jurídicos, pelo que são de considerar como relações jurídicas administrativas,
todas as ligações jurídicas entre sujeitos, segundo o Direito Administrativo.
Em suma:
numa primeira fase a relação administrativa não integrava e não tinha em vista
os interesses (legítimos) dos particulares, sendo estes meros “objectos” do
poder administrativo. Já numa segunda fase, ainda com a manifestação de alguns
rasgos de uma administração agressiva e totalitária, as relações jurídicas bastavam-se
aos actos administrativos. Desta forma, a administração poderia,
unilateralmente e, mais uma vez, sem ter em conta os legítimos interesses dos
cidadãos, criar e impor consequências administrativas para estes (prevalência das
formas de actuação).
Com o
desaparecimento do paradigma liberal da administração agressiva, e sob a égide
do Estado social, o instituto do acto administrativo conhece limitações, na
medida em que conhece a integralidade do relacionamento entre a administração e
os privados; o acto administrativo deixa de ser a forma exclusiva de actuação
administrativa.
A relação administrativa é um instituto
muito mais amplo que o acto administrativo: vence as suas limitações e permite
explicar os vínculos jurídicos existentes entre a administração e os
particulares, dando real resposta às exigências da administração moderna. Mas
tal instituto não faz desaparecer o acto administrativo, pelo contrário,
integra-o, concebendo-o como um dos factos susceptíveis de criar, modificar ou
extinguir essas mesmas relações jurídicas (ao lado dos contratos,
comportamentos materiais, etc).
A doutrina
da relação jurídica explica, assim, os fenómenos de participação (de privados
ou mesmo de outras entidades públicas) no procedimento administrativo (ART 8º
do Código do Procedimento Administrativo): este surge como um instrumento de regulação
de relações jurídicas, cujos intervenientes são chamados a actuar para defesa
das suas posições jurídicas substantivas.
É necessário
entender que, os direitos subjectivos dos indivíduos (e grupos) se dividem em
dois aspectos que, consequentemente apresentam dimensões diferentes: (1) aspectos
substantivos (definição supra citada); (2) dimensão procedimental, em que se
atribui, aos seus titulares, faculdades de intervenção e oportunidades de influenciação
do procedimento administrativo, permitindo aos particulares defender
preventivamente as suas posições substantivas e participar activamente no processo
decisivo de administração.
De acordo
com o entendimento do Professor Regente VASCO PEREIRA DA SILVA, há duas
perspectivas actuais de entendimento do conceito de relação jurídica (o que as
divide é o modo de conceber o momento de criação dessa mesma relação:
primeiramente, aquela que é directamente criada pela norma jurídica, ou o
instituto que, para existir, necessita da concretização de um facto criador.
Como tal, o Professor defende que, e em conformidade com o Professor JORGE
MIRANDA, a relação jurídica é apenas uma das várias situações jurídicas possíveis,
sendo que esta corresponde a um esquema relacional caracterizada pelos vínculos
jurídicos entre particulares e administração (mas também entre as autoridades
administrativas relativamente umas às outras). Esta é então instrumento de
análise das relações entre particulares e administração, correspondendo à maior
e mais importante parcela das situações administrativas, ainda que não
correspondendo à totalidade dos fenómenos jurídicos – não se pretende que este
instituto seja monopolista e exclusivista, ao conseguir abarcar todos os
fenómenos jurídicos.
Esta
realça, igualmente, os direitos dos cidadãos e não o poder da administração (em
contraposição à doutrina clássica do acto administrativo): o particular já
recebe tratamento como sendo sujeito de direito, deixando de ser mero “objecto”
da administração, em que não lhe são reconhecidos quaisquer direitos e deveres
(precisamente, por não ser considerado sujeito de direito, relativamente à
administração), sendo colocado em posição de paridade jurídica face à
administração. A relação jurídico-administrativa é revestida de conteúdo juridicamente
relevante, visto reconhecer direitos e deveres previstos na constituição e na
lei, às partes que mantêm tal relação recíproca.
Portanto, para
que haja uma relação jurídica, o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA entende ser
necessário que esta compreenda, ou uma previsão legal, ou um facto jurídico criador,
como actos administrativos, intervenção do particular no procedimento
administrativo (ART 8º do Código do Procedimento Administrativo conjugado com o
ART 268º da Constituição da República Portuguesa).
Os
fenómenos de participação (privada ou de entidades públicas) no procedimento,
atribui aos particulares a faculdade de intervenção e oportunidades de
influenciar o procedimento administrativo (através da participação nas decisões
ou deliberações que lhes digam respeito) e, portanto, a oportunidade de
defenderem as suas posições substantivas, intervenção essa que está associada
ao actual entendimento dos direitos fundamentais (como direitos de e ao
procedimento).
Como tal,
antes da verificação de 1 facto jurídico criador da relação jurídica, esta não existe,
existindo somente uma previsão legal de direitos e deveres (como já referimos,
recíprocos) susceptíveis de a vir integrar. Só mediante qualquer facto jurídico
é que a mera previsão legal de relação jurídica pode vir a ser aplicada, passando
a regulá-la.
Fazendo uma
análise atenta cerca dos direitos
fundamentais, o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA defende a sua “dupla
natureza”, apondo-lhes duas vertentes: vertente garantista, enquanto sendo
direitos subjectivos; vertente social, enquanto são “elementos fundamentais da
ordem objectiva da comunidade”, como valores ou fins que esta se propõe a
prosseguir.
Os direitos
fundamentais concedem a protecção dos indivíduos face a agressões provindas dos
poderes administrativos (ART 266º/1 da CRP e ART 4º do CPA – direitos constitucionais
concedidos aos cidadãos) e, consequentemente, limitam os actos da
administração.
Esta “dupla
natureza” explica a lógica de “agressão-defesa” pois, os direitos fundamentais são
susceptíveis de invocação directa pelos particulares nas relações jurídicas (enquanto
direitos subjectivos), e a vinculação objectiva do legislador ordinário, que não
pode pôr em causa tais direitos através das normas de direito administrativo,
sob pena de inconstitucionalidade e de lesão dos direitos subjectivos dos seus
titulares.
Tendo por
base o entendimento do Professor MARCELO REBELO DE SOUSA, o Princípio da
legalidade (ART 3º do CPA), um dos Princípios disciplinadores da actuação
administrativa que a submete aos termos definidos pela lei e pelo direito,
dentro dos limites dos poderes que lhes são atribuídos, poder-se-á concluir que
a administração terá sempre que ter em conta e respeitar, nas suas formas de
actuação, os interesses dos particulares, estando sujeita, inclusivamente, aos
princípios da igualdade e da proporcionalidade, na constância de eventual afectação
das posições jurídicas dos particulares face à administração (ART 5º do CPA). O
Professor explica ainda que, o princípio da legalidade compreende duas
vertentes: (1)objectiva; (2) subjectiva, que se refere ao respeito dos direitos
e interesses dos administrados, legalmente protegidos - tutela directa e
imediata de uma realidade substantiva - (ART 266º da CRP e ART 4º do CPA).
Defende ainda que, dentro dos direitos subjectivos, gozam de protecção
reforçada e de aplicação directa dos preceitos constitucionais sem a
intervenção da lei, os direitos, liberdades e garantias (e outros direitos de
natureza análoga) – ARTS 17º e 18º da CRP.
Na verdade,
de acordo com o princípio da decisão (ART 9º do CPA) e com o princípio da colaboração
da administração com os particulares (ART 7º do CPA), a administração tem o dever
de se pronunciar sobre os assuntos da sua competência que lhes sejam
apresentados pelos particulares, procurando sempre assegurar a sua adequada
participação na função administrativa, tendo em conta os seus direitos
subjectivos (capacidade à disposição; possibilidade de invocarem directamente
os direitos fundamentais).
Na própria
caracterização do Direito Administrativo, MARCELO REBELO DE SOUSA, admite que o
Direito Administrativo “é simultaneamente um meio de afirmação da vontade do
Poder, e um meio de protecção do cidadão contra o Estado”. Na verdade, o Professor
faz a distinção entre três tipos de normas administrativas: orgânicas,
normas que regulam a organização da administração; funcionais, onde se
destacam as normas processuais, que regulam o modo de agir específico da
administração pública, estabelecendo processos de funcionamento, métodos de
trabalho, formalidades a cumprir; relacionais, normas que regulam as relações
entre particulares e administração no exercício da actividade administrativa. Conclui
ainda que o Direito Administrativo é a “procura permanente de harmonização das exigências
da acção administrativa, na prossecução dos interesses gerais, com as exigências
da garantia dos particulares, na defesa dos seus direitos e interesses
legítimos” (harmonização das exigências da administração e das exigências dos
particulares). Assim, as normas administrativas não conferem apenas poderes de
autoridade à administração, impondo restrições à acção da administração,
especialmente no que concerne às exigências da garantia dos particulares, com
reforço da protecção dos direitos, liberdades e garantias (ART 266º/1 da CRP e
ART 4º do CPA).
Concluindo,
a partir do momento em que se consideram a administração e os particulares como
sujeitos de direito, dotados de direitos e deveres recíprocos, verifica-se que esta
não pode prosseguir os interesses públicos de forma autoritária, na medida em que
terá de actuar, relativamente aos particulares, observando as várias limitações
que lhe são impostas: com base em normas jurídicas, respeitando os interesses e
os direitos fundamentais legalmente protegidos dos cidadãos.
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