O princípio da legalidade é a pedra basilar sobre a qual assentam
o Estado de Direito Democrático e ao qual se subordina a actuação da
Administração Pública. Este surge consagrado no artigo 3.º CPA como reflexo do
disposto no artigo 262.º, n.º 2 CRP.
Tal como aponta MARCELO REBELO DE SOUSA o princípio da legalidade é
geralmente decomposto em duas dimensões distintas. Por um lado, a preferência
de lei que se traduz no facto de a actuação jurídico-administrativa se encontrar
subordinada à lei, não a podendo contrariar. Por outro, a segunda dimensão que
pode ser retirada do princípio da legalidade é a da reserva de lei. Mais do que
a mera não contrariedade ao bloco de legalidade, é exigida à actuação administrativa
que tenha sempre por base uma norma jurídica que habilite essa mesma actuação.
A necessidade dessa norma de permissão expressa acaba por limitar de forma
assinalável o escopo de competência e o campo de actuação que é conferido à
Administração Pública. Como conclui MÁRIO AROSO DE ALMEIDA a “lei não é apenas o limite mas o pressuposto
e o fundamento de toda a atividade administrativa pelo que não existe
Administração Pública, nem exercício da função administrativa, sem lei, sem
norma legal que o fundamente”.
Mas esta dimensão do princípio da legalidade em que se traduz a reserva
de lei que constitui o fundamento da actuação da Administração Pública é, por
sua vez, decomposta em dois corolários distintos. Por um lado a necessidade da
existência de precedência de lei, porquanto não bastará que o fundamento
normativo exista per si, esse
fundamento terá que ser, de um ponto de vista cronológico, anterior. Por outro
lado, exige-se a existência de um reserva de densificação normativa, que “exprima a necessidade de o mesmo fundamento
jurídico-normativo possuir um grau de pormenorização suficiente para permitir
antecipar adequadamente a actuação administrativa em causa”. Se a reserva de
lei se bastasse com a existência de uma norma anterior, a chamada norma
habilitante (uma vez que habilita, isto é, confere legitimidade de actuação
administrativa) poderia muito bem ser uma norma meramente formal, destituída de
conteúdo, o que no limite levava a que a administração pudesse fazer tudo.
Imagine-se que a Lei orgânica da PSP continha a seguinte disposição:
“Os agentes da PSP podem tomar todas as medidas que entendam
necessárias, quando julguem que elas possam ser imprescindíveis ao correcto desempenho
das suas funções”.
Se o Sr. Agente X decidisse disparar sobre o cidadão Y porque este havia
atravessado a estrada fora da passadeira, possivelmente ao abrigo desta norma
não estaríamos perante uma actuação ilegal. Todavia, como é bom de ver, esta
norma de habilitante contraria quer o seu fundamento democrático, quer o seu
fundamento garantístico. Por um lado, já que seria à Administração que caberia
a determinação dos critérios e meios de actuação, por outro, porque aos
destinatários seria de todo impossível prever, com um mínimo de segurança, qual
a orientação da actuação administrativa.
Extremamente discutível será o necessário grau de concretização exigido,
e exigível, para fundar a actuação da administração, nomeadamente quando se esteja
perante o exercício de poderes ablativos, isto é, quando se esteja perante
actos que colidam (directamente) com os direitos fundamentais.
É que convém ter presente que quanto menor for a densidade da norma
habilitante, maior espaço de actuação possuirá a administração o que terá
reflexos imediatos na atenuação da intensidade do controlo jurisdicional que
pode ser exercido sobre os actos jurídicos em que se concretiza o exercício
desses poderes.
Como afirma cristalinamente MÁRIO AROSO DE ALMEIDA “a maior ou menor intensidade do controlo jurisdicional depende da maior
ou menor densidade da regulação normativa”, já que os Tribunais Administrativos
só podem sindicar a legalidade, e já não o mérito, da actuação administrativa e
quanto maior for a abertura que é conferida pelo quadro normativo, menos
intensa será a vinculação das autoridades administrativas ao princípio da
legalidade e consequentemente menor a sindicabilidade pelos tribunais.
Pois bem, é possível distinguirmos normas mais ou menos fechadas. Assim
será consoante se densifique mais ou menos os pressupostos ou os meios de
actuação da Administração. Queremos com isto dizer, que a maior ou menor
abertura confere à Administração uma maior ou menor margem de livre decisão.
Esta constitui um limite funcional da jurisdição administrativa, pois as opções
do órgão administrativo tomadas nesse domínio relevam da esfera do mérito e não
da esfera da validade.
Mas, se partirmos do principio, à semelhança de BERNARDO AYALA, de que
qualquer acto jurídico da Administração pode ser alvo de fiscalização junto dos
Tribunais, a pedra-de-toque residirá na seguinte questão: até onde podem e
devem os Tribunais controlar a actividade administrativa?
Em sede de princípio devemos entender que a margem de livre decisão por
respeitar ao mérito, à oportunidade, à conveniência deverá ter-se por
insusceptível de controlo judicial. Reflexamente, tudo o que escape ou se
coloque fora dessa esfera será judicialmente sindicável, já que aí estaremos
perante a validade da conduta e, nessa medida, já caímos fora da margem de
livre decisão, estamos perante um espaço de vinculação.
BERNARDO AYALA entende que apesar deste postulado servir como ponto de
partida «não tem força para se assumir
como “ponto de chegada”, pois no plano prático-concreto o que é decisivo é
apurar onde é que há livre decisão e onde é que há vinculação.”
Importa referir previamente, que a margem de livre decisão encontra o
seu fundamento na desadequação que os comandos normativos, por natureza gerais
e abstractos, possuem em relação ao caso concreto aliado ao facto de a
separação de poderes o aconselhar. Se assim não fosse, a emissão de normas
fechadas pelo poder legislativo retiraria à Administração a liberdade de
adaptação ao caso concreto.
BERNARDO AYALA, por outro lado, analisa quais os fundamentos para que
exista uma espaço de actuação da administração imune ao poder judicial
distinguindo factores de duas ordens. Aqueles que radicam numa linha factual,
como sejam a falta de aptidão dos tribunais para exercer cabalmente o controlo
da margem de livre decisão; a ausência de responsabilização dos juízes pelas
suas decisões quando defronte a responsabilidade da Administração pública e
ainda vantagens para o administrado na ausência de controlo judicial do mérito
da conduta administrativa já que aquela, beneficia de uma proximidade que lhe
permite uma maior adequação face aos interesses particulares.
Aponta ainda factores de índole normativa, essencialmente três: o
princípio da separação de poderes – já que “se
os tribunais controlassem o exercício da margem de livre decisão administrativa
estariam, na verdade, a exercer a função administrativa” (MARCELO REBELO DE
SOUSA); a restrição dos poderes de cognição do juiz às questões de validade,
aquilo que BERNARDO AYALA, denomina de “fundamento
legal genérico” e, finalmente, a vontade do legislador, ou seja, o
fundamento legal específico.
Falar em margem de livre de decisão não é o mesmo, nem pode ser o mesmo,
que falar em total liberdade de decisão, isto é, encontra-se delimitada. São
pois possíveis limites legais, como por
exemplo, a lei estabelecer que certo poder discricionário da administração só
será validamente exercido se o órgão decisor fundamentar essa decisão, no fundo
estamos perante requisitos de legalidade específicos de determinada conduta
administrativa.
Por outro lado, é possível a existência de limites decorrentes de uma auto-vinculação. Aqui estamos perante
orientações de nível intra-administrativo (circulares, despachos, máxime aquilo que geralmente é conhecido
por direito circulatório), ou seja, é a própria administração que restringe a
sua margem de liberdade, a despeito daquilo que foi a vontade do legislador. O
que apesar de possibilitar uma maior previsibilidade (acautelando-se o
princípio da igualdade e da segurança jurídica) é de discutível legitimidade.
Podem ainda elencar-se limites
internos e limites externos à
margem de livre decisão. Quanto aos limites internos ou imanentes, estamos
perante aqueles limites que se ligam às condições de exercício propriamente
dito da margem de livre decisão. Isto é, as condições que limitam o percurso no
qual desemboca aquela que é a decisão final emitida ao abrigo deste espaço de
liberdade de actuação. Estes prender-se-ão com os princípios da actividade
administrativa constantes do art. 262.º CRP, designadamente, o princípio da
prossecução do interesse público, da imparcialidade, da boa fé, da protecção
das posições jurídicas dos particulares, entre outros. Estes limites internos,
como é bom de ver, enformam as decisões a tomar pela Administração Pública.
Mas, falta precisar o que são os limites externos, esses dirão respeito,
no entender de BERNARDO AYALA, não tanto ao exercício de poderes de livre
decisão, mas sobretudo à sua orientação a
priori e ao seu controlo a posteriori.
A existência de uma margem de livre decisão (e não um espaço total de
decisão) coloca problemas ao controlo de decisões administrativas. Será muitas vezes
difícil de precisar aquilo que é o controlo da legalidade e o controlo do
mérito da actuação administrativa pelos Tribunais, acabando estes, muitas vezes,
por se furtar à sua função de julgar por não quererem adentrar-se de esferas que
não lhes pertencem, sob pena de prejuízo para o princípio da separação de poderes.
Maria Vieira Nº 22017
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