quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Princípio da Legalidade. Breve Apontamento.


O princípio da legalidade é a pedra basilar sobre a qual assentam o Estado de Direito Democrático e ao qual se subordina a actuação da Administração Pública. Este surge consagrado no artigo 3.º CPA como reflexo do disposto no artigo 262.º, n.º 2 CRP.

Tal como aponta MARCELO REBELO DE SOUSA o princípio da legalidade é geralmente decomposto em duas dimensões distintas. Por um lado, a preferência de lei que se traduz no facto de a actuação jurídico-administrativa se encontrar subordinada à lei, não a podendo contrariar. Por outro, a segunda dimensão que pode ser retirada do princípio da legalidade é a da reserva de lei. Mais do que a mera não contrariedade ao bloco de legalidade, é exigida à actuação administrativa que tenha sempre por base uma norma jurídica que habilite essa mesma actuação.

A necessidade dessa norma de permissão expressa acaba por limitar de forma assinalável o escopo de competência e o campo de actuação que é conferido à Administração Pública. Como conclui MÁRIO AROSO DE ALMEIDA a “lei não é apenas o limite mas o pressuposto e o fundamento de toda a atividade administrativa pelo que não existe Administração Pública, nem exercício da função administrativa, sem lei, sem norma legal que o fundamente”.

Mas esta dimensão do princípio da legalidade em que se traduz a reserva de lei que constitui o fundamento da actuação da Administração Pública é, por sua vez, decomposta em dois corolários distintos. Por um lado a necessidade da existência de precedência de lei, porquanto não bastará que o fundamento normativo exista per si, esse fundamento terá que ser, de um ponto de vista cronológico, anterior. Por outro lado, exige-se a existência de um reserva de densificação normativa, que “exprima a necessidade de o mesmo fundamento jurídico-normativo possuir um grau de pormenorização suficiente para permitir antecipar adequadamente a actuação administrativa em causa”. Se a reserva de lei se bastasse com a existência de uma norma anterior, a chamada norma habilitante (uma vez que habilita, isto é, confere legitimidade de actuação administrativa) poderia muito bem ser uma norma meramente formal, destituída de conteúdo, o que no limite levava a que a administração pudesse fazer tudo.

Imagine-se que a Lei orgânica da PSP continha a seguinte disposição:

“Os agentes da PSP podem tomar todas as medidas que entendam necessárias, quando julguem que elas possam ser imprescindíveis ao correcto desempenho das suas funções”.

Se o Sr. Agente X decidisse disparar sobre o cidadão Y porque este havia atravessado a estrada fora da passadeira, possivelmente ao abrigo desta norma não estaríamos perante uma actuação ilegal. Todavia, como é bom de ver, esta norma de habilitante contraria quer o seu fundamento democrático, quer o seu fundamento garantístico. Por um lado, já que seria à Administração que caberia a determinação dos critérios e meios de actuação, por outro, porque aos destinatários seria de todo impossível prever, com um mínimo de segurança, qual a orientação da actuação administrativa.

Extremamente discutível será o necessário grau de concretização exigido, e exigível, para fundar a actuação da administração, nomeadamente quando se esteja perante o exercício de poderes ablativos, isto é, quando se esteja perante actos que colidam (directamente) com os direitos fundamentais.

É que convém ter presente que quanto menor for a densidade da norma habilitante, maior espaço de actuação possuirá a administração o que terá reflexos imediatos na atenuação da intensidade do controlo jurisdicional que pode ser exercido sobre os actos jurídicos em que se concretiza o exercício desses poderes.

Como afirma cristalinamente MÁRIO AROSO DE ALMEIDA “a maior ou menor intensidade do controlo jurisdicional depende da maior ou menor densidade da regulação normativa”, já que os Tribunais Administrativos só podem sindicar a legalidade, e já não o mérito, da actuação administrativa e quanto maior for a abertura que é conferida pelo quadro normativo, menos intensa será a vinculação das autoridades administrativas ao princípio da legalidade e consequentemente menor a sindicabilidade pelos tribunais.

Pois bem, é possível distinguirmos normas mais ou menos fechadas. Assim será consoante se densifique mais ou menos os pressupostos ou os meios de actuação da Administração. Queremos com isto dizer, que a maior ou menor abertura confere à Administração uma maior ou menor margem de livre decisão. Esta constitui um limite funcional da jurisdição administrativa, pois as opções do órgão administrativo tomadas nesse domínio relevam da esfera do mérito e não da esfera da validade.

Mas, se partirmos do principio, à semelhança de BERNARDO AYALA, de que qualquer acto jurídico da Administração pode ser alvo de fiscalização junto dos Tribunais, a pedra-de-toque residirá na seguinte questão: até onde podem e devem os Tribunais controlar a actividade administrativa?

Em sede de princípio devemos entender que a margem de livre decisão por respeitar ao mérito, à oportunidade, à conveniência deverá ter-se por insusceptível de controlo judicial. Reflexamente, tudo o que escape ou se coloque fora dessa esfera será judicialmente sindicável, já que aí estaremos perante a validade da conduta e, nessa medida, já caímos fora da margem de livre decisão, estamos perante um espaço de vinculação.

BERNARDO AYALA entende que apesar deste postulado servir como ponto de partida «não tem força para se assumir como “ponto de chegada”, pois no plano prático-concreto o que é decisivo é apurar onde é que há livre decisão e onde é que há vinculação.”

Importa referir previamente, que a margem de livre decisão encontra o seu fundamento na desadequação que os comandos normativos, por natureza gerais e abstractos, possuem em relação ao caso concreto aliado ao facto de a separação de poderes o aconselhar. Se assim não fosse, a emissão de normas fechadas pelo poder legislativo retiraria à Administração a liberdade de adaptação ao caso concreto.

BERNARDO AYALA, por outro lado, analisa quais os fundamentos para que exista uma espaço de actuação da administração imune ao poder judicial distinguindo factores de duas ordens. Aqueles que radicam numa linha factual, como sejam a falta de aptidão dos tribunais para exercer cabalmente o controlo da margem de livre decisão; a ausência de responsabilização dos juízes pelas suas decisões quando defronte a responsabilidade da Administração pública e ainda vantagens para o administrado na ausência de controlo judicial do mérito da conduta administrativa já que aquela, beneficia de uma proximidade que lhe permite uma maior adequação face aos interesses particulares.

Aponta ainda factores de índole normativa, essencialmente três: o princípio da separação de poderes – já que “se os tribunais controlassem o exercício da margem de livre decisão administrativa estariam, na verdade, a exercer a função administrativa” (MARCELO REBELO DE SOUSA); a restrição dos poderes de cognição do juiz às questões de validade, aquilo que BERNARDO AYALA, denomina de “fundamento legal genérico” e, finalmente, a vontade do legislador, ou seja, o fundamento legal específico.

Falar em margem de livre de decisão não é o mesmo, nem pode ser o mesmo, que falar em total liberdade de decisão, isto é, encontra-se delimitada. São pois possíveis limites legais, como por exemplo, a lei estabelecer que certo poder discricionário da administração só será validamente exercido se o órgão decisor fundamentar essa decisão, no fundo estamos perante requisitos de legalidade específicos de determinada conduta administrativa.

Por outro lado, é possível a existência de limites decorrentes de uma auto-vinculação. Aqui estamos perante orientações de nível intra-administrativo (circulares, despachos, máxime aquilo que geralmente é conhecido por direito circulatório), ou seja, é a própria administração que restringe a sua margem de liberdade, a despeito daquilo que foi a vontade do legislador. O que apesar de possibilitar uma maior previsibilidade (acautelando-se o princípio da igualdade e da segurança jurídica) é de discutível legitimidade.

Podem ainda elencar-se limites internos e limites externos à margem de livre decisão. Quanto aos limites internos ou imanentes, estamos perante aqueles limites que se ligam às condições de exercício propriamente dito da margem de livre decisão. Isto é, as condições que limitam o percurso no qual desemboca aquela que é a decisão final emitida ao abrigo deste espaço de liberdade de actuação. Estes prender-se-ão com os princípios da actividade administrativa constantes do art. 262.º CRP, designadamente, o princípio da prossecução do interesse público, da imparcialidade, da boa fé, da protecção das posições jurídicas dos particulares, entre outros. Estes limites internos, como é bom de ver, enformam as decisões a tomar pela Administração Pública.

Mas, falta precisar o que são os limites externos, esses dirão respeito, no entender de BERNARDO AYALA, não tanto ao exercício de poderes de livre decisão, mas sobretudo à sua orientação a priori e ao seu controlo a posteriori.
A existência de uma margem de livre decisão (e não um espaço total de decisão) coloca problemas ao controlo de decisões administrativas. Será muitas vezes difícil de precisar aquilo que é o controlo da legalidade e o controlo do mérito da actuação administrativa pelos Tribunais, acabando estes, muitas vezes, por se furtar à sua função de julgar por não quererem adentrar-se de esferas que não lhes pertencem, sob pena de prejuízo para o princípio da separação de poderes.
                                                                                                                             Maria Vieira  Nº 22017

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